Ela estava no trem, assento prioritário. Quando vagou o banco do lado, pulou pra lá e encostou metade do seu corpo na lateral do vagão, cabeça completamente exposta à janela, raios de sol batendo na sua cara. Ela tinha os cabelos escuros presos num emaranhado e uma franja meio rebelde, meio mocinha, caída sobre a testa. Olhos pequenos, cílios idem. Tinha o nariz bem fino, meio torto, e os lábios mais finos ainda.

Eu estava em pé, quase diante dela, lendo meu livro, carregando duas bolsas, ouvindo Strokes e tentando me equilibrar.

Ela estava confortavelmente sentada — já disse que apoiando a lateral do corpo? — lendo uma revista, despretensiosamente. Revista de moda. Contei que os raios de sol iluminavam a cara dela? Pele branca, pálida. Sem maquiagem alguma, sem rímel. Cílios pequenos, olhos menores ainda. Nenhum batom se quer, lábios finos, nariz idem.

Tinha cara de europeia. Quantos anos devia ter? Eu chutaria alguma coisa entre 28 e 42. Corpo magro dentro de um vestido colorido, com girassóis, tons de verde, uma bagunça botânica, não entendi muito bem. Um tricô pendurado do pescoço, uma bolsa que não combinava com nada, carregava uma jaqueta jeans, bota preta de camurça, cano longo. E a revista. Nariz fino apontado pra revista.

Eu estava em pé perto dela, já equilibrada. Mas não conseguia ler, ela era bonita demais naquele modelito cafona e iluminada pelo sol. E eu tentando entender aquela mulher tão comum que parecia ter saído de um filme francês. A qualquer momento ela me falaria bonjour.

Vez ou outra ria lendo alguma coisa nas páginas que folheava, não sei se era uma Elle ou qualquer outra do gênero. Talvez. Nenhum esmalte na unha, nenhuma maquiagem. Na cara, só o sol.

Eu estava lá, equilibrada, já tinha retomado a leitura, estava tudo certo. Tinha um homem de social ao meu lado, estatura mediana, careca, barrigudo, parecia o seu Barriga. Ele me olhava fixamente. Tive até a ligeira sensação de que ele ia tirar uma foto minha. Me incomodei. Olhei pra ele, olhei pra ela, olhei pro livro. Ele desceu.

Será que ela percebeu que eu a olhava de cima à baixo, que reparei até nos dedos da mão que eram grandes demais? E aquele nariz fino e torto? Eu ficaria preocupada se alguém me olhasse como eu olhei pra ela, mas é que eu estava tentando lê-la. Eu só queria saber quem era ela. Talvez eu quisesse ser ela um pouco.

Pinterest

Parecia segura demais, daquelas que nunca se deitam com alguma preocupação na cabeça. Uma mulher sozinha, mas não solitária. Você nunca a encontraria em um boteco da esquina onde eu costumo ir. Mas a veria andando, à noite, na calçada da Avenida Paulista, tomando um sorvete num dia que a temperatura de São Paulo seria 13º C, calçando as botas pretas e o vestido florido. Tinha cara de quem atravessava a rua sem olhar, comia bolacha água e sal de manhã, talvez tivesse um gato ou dois. Amava sua avó, mas não mantinha contato com a família. Comprava um buquê de flores pra si mesma vez em sempre, colocava na mesa empoeirada da sala. Tinha um toca CDs e escutava Ney Matogrosso. Cara de que não pensa muito, só vive. Não tem grilo nenhum com a Alice. Tinha cara de Alice. Talvez Ana. Alguma coisa nela que dizia que seu nome mesmo era Amelie. Ela lembrava a Amelie Poulain. Mas ela também tinha um ar da Kriska, do livro Budapeste, cujo jeito já nem sei mais se é fruto da minha imaginação ou se foi a atriz do filme de mesmo nome que assisti outro dia.

O trem chegou a uma estação antes da minha, ela tinha cara de que desceria ali. Não desceu. A mulher do trem era uma visão presente e seu passado fora criado por mim. Querendo lê-la, eu a inventei. Percebi que já tinha uma história pronta pra minha personagem antes mesmo de escrever, mas ela acabou com o roteiro, não desceu onde tinha que descer. Não pude dar a ela um namorado, nem mudar seu emprego. Não finalizei minha história, um conto incompleto, agora. Talvez o seu Barriga também estivesse criando uma história pra mim e eu o frustrei quando não desci onde ele achou que eu desceria. E eu nunca vou saber quem ela realmente era. Talvez gostasse de boteco de esquina, tivesse alergia a gatos e odiasse saber que me lembrava a Amelie Poulain. A única coisa que eu acho que a acertei foi na sua idade, alguma coisa entre 28 e 42.

1 comentários On Um conto incompleto

Deixe um comentário:

Seu email não será publicado.

Site Footer