Vinte de outubro. Foi nesse mesmo dia do ano de 2021 que a coisa começou a desembocar. Ou então, foi por causa desse dia que comecei a reparar que as coisas sempre desembocam.

Muito cedo saímos para o hospital, minha mãe silenciosa e em aparente paz, meu pai calado em sua nítida aflição, e eu e minha irmã, aguçadas na fala na tentativa de distraí-los ou atenuar pensamentos ansiosos diversos, deles ou nossos. Meus, provavelmente. 

Os minutos que antecederam a internação para cirurgia foram tão duros para ele, suponho, que o último abraço entre em meu pai e eu foi rígido, mais dado que recebido. Era como se ele soubesse onde acabaria, onde iria desembocar. E eu também, confesso, por isso insisti que deixasse o corpo mole mas não adiantou. 

A tarde andou lenta, arrastada, no carro, na calçada, no café em frente ao hospital.. E a cirurgia durou muito mais tempo que o previsto, deixando cada coração um tanto apertado, mas cada um a seu modo: havia o mais esperançoso e o mais agoniado. Não sei dizer quem carregava qual. 

Naquele dia eu lia um livro que ficou famoso pela narrativa e tema, um romance contemporâneo de uma mulher que se via sozinha, sem aviso, depois que o cara com quem saía sumia sem maiores explicações. O tal do ghosting. A história e sua escrita me irritaram desde o começo e minha memória afetiva não me permite distinguir se pela obra ou pelo momento que foi lida. 

Que me importa um desaparecimento desses? De fantasmas sei eu. 

De toda forma, não recomendo. Nem o livro nem a dor de perder alguém de vista, seja lá como for.  

A boa notícia chegou perto das 16h pelas palavras festivas da minha irmã que apareceu com seu andar contente e confiante pela calçada. A cirurgia tinha demorado, é verdade, mas foi excelente, incrível, muito melhor do que o que se esperava. O que era procurado na laringe não foi mais achado, desapareceu também, como o cara do livro e como viria a ser depois para a gente, e elas entenderam o milagre. 

Eu fumei outro cigarro da minha mãe depois de outros anteriores, por gula, desespero, apatia. Não sei. Era como se uma pedra grande e pesada tivesse sido posta no meu peito e uma tristeza grande tomou conta do meu corpo. E a culpa também. 

Elas estavam felizes, satisfeitas e eu não conseguia fazer parte da comemoração. Eu tinha sido tirada da cena em movimento e do amortecimento causado pelo cansaço. Deslocada, era como se a música de uma festa acabasse e acendessem a luz do salão sem aviso. Era hora de ir embora, os convidados foram desconvidados, era tempo de desembocar. 

Por que eu não sentia felicidade se meu pai estava bem? Se ele sairia em dois dias, no máximo? Se essa família era agraciada por milagres movidos pela fé que eu não tenho, mas elas sim. Será que era fé que me faltava? Era maldade minha tristeza? 

No caminho de volta o cheiro do carro me sufocava, as vozes me irritavam, o milagre me dava raiva. O corpo exausto, a mente doída de tanto café, o estômago esfomeado e ainda a pedra no peito. 

Só no banho que pensei, com detalhes, em um texto que nunca escrevi, cujas palavras já não me lembro mais, sobre a não explicação: ali, debaixo da água corrente, a consciência me contou que nada deve ser plenamente compreendido e quando me joguei nos braços da incompreensão, da incerteza, do não saber é que chorei. 

As lágrimas que desembocaram pesadas e densas pareciam litros e aí a pedra no peito deu lugar à alegria e à calma e então eu pude sentir felicidade. Meu pai estava bem! Que alívio, enfim! 

Mandei relatos em áudio para as amigas, ri sozinha, celebrei. Descansei daqueles dias tão difíceis, sentei no sofá chorando e gargalhando, vibrei. Senti uma fome estrondosa, pedi Mc Donalds para comemorar, comeria com toda minha alegre voracidade e deixaria a comida processada se processar no meu corpo todo que tinha recuperado sua esperança. 

Daí os detalhes.
Já era noite, saí na rua com minha cachorra, ela não queria andar, insisti veemente puxando pela coleira, fomos até a esquina, eu tinha medo de encontrar baratas no quarteirão, baratas rondam sarjetas à noite, encontrei na verdade a vizinha, ela me contou que tinha câncer de bexiga, pensei que era muita gente conhecida com esse tal de câncer, gostava dessa mulher, ela disse que estava bem, torci para que ficasse bem como meu pai, o entregador chegou antes que eu chegasse em casa, ele estava de bicicleta, a cachorra não andava, ele trouxe até mim, eu andei atrapalhada com a cachorra na coleira e o pacote de comida enorme, buscando a chave, contornando a guia, tropeçando em alegria, ela aflita em farejar a encomenda, abri o portão, deixei a cachorra na garagem, levei a comida pra dentro, limpei as patas da cachorra, deixei que entrasse em casa, finalmente jantei, sozinha, meu marido chegou depois, jantou ao meu lado, eu estava exausta, tinha algo na tv, o sono tomou conta do meu espírito, um sono que arde os olhos e eu sei que não dormi ali 


Mas dessa quarta-feira já não lembro nada mais. 
E foi na sexta que desembocou. 

. . .

A vida é como se fosse um bonde. Começamos lá no fundo, sentados no colo de alguém. Pequenos. Vamos passando pelas ruas e crescemos. Pegamos novos passageiros e alguns viram amores. Disputamos o controle o tempo todo com o motorista. Alguns vão ficando pelo caminho, saltando onde devem. Provavelmente vão pegar esquinas, praças e avenidas. Quem sabe haverá um novo encontro no futuro. 
A morte, essa é uma freada brusca. Uma interrupção do instante que deixa um vão, um susto. Um não saber mais. 

. . .

Desde então penso no que nos levou até aquele dia, de onde cada um de nós partiu até chegar no momento desse susto estendido que é perder alguém. Trezentos e sessenta e três dias depois e ainda me assusto, agora não mais com uma freada brusca mas maravilhada com a existência dela. 

Surpresa em como sabemos navegar em qualquer água, mesmo quando ignorantes, depois das desembocaduras. 

Ano um

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