Eu estava no sofá lendo Rubens Paiva quando a cachorra atravessou num súbito galope a porta já aberta e ele veio devagarinho logo atrás contando que ela tinha feito tanto cocô na rua que precisou de duas sacolas pra recolher. A verdade é que naquela hora eu não assimilei exatamente o que ele dizia, o que é bastante comum já que ele fala devagar demais pro meu pensar ansioso e inquieto.
Ele parou perto da cozinha, virou a cabeça na minha direção e o corpo pro outro lado e começou a narrativa que eu só fui entender depois. Tudo à minha volta se mexia, parecia que girava, parecia foto de longa exposição, mas a fala dele ficava cada vez mais lenta e baixa, quase muda. Olhei aqueles olhos por trás das lentes dos seus óculos e me veio um certo desconforto misturado com equilíbrio. Uma náusea de alegria em excesso. Era tão comum aquilo tudo — a voz, a postura, as mãos, o semblante, o suor que escorria na testa— que por algum tempo esqueci de quem eu era antes dele. Doeu, mas uma dor gostosa. E tive mais alguns aflitivos segundos me perguntando se aquela cena era mesmo real.
Já teve num sonho em que seu corpo era levado sem que você conseguisse controlar? A sensação foi mais ou menos essa. Acho até que cheguei a ouvir uma música no lugar da história que ele contava, seu corpo e seu jeito me embalaram como numa dança de passos marcados e leves.
Ser dois é assim, afinal. Você entra e o par se junta. Duas unidades, dois corpos separados. Depois que a música começa o que antes eram dois se torna um e chega um ponto que nem se sabe mais quem conduz e quem é conduzido. As paredes podem até despencar à sua volta, um pode pisar no pé do outro, o giro pode sair meio torto. Mas você perde o equilíbrio fora desse compasso. Eu nem sabia mais se era ele ou eu falando, se ele já tinha falado, se eu tinha premeditado, se era um dèjá vu. Pensei que eu era ele, e ele estava em mim. Até que a música cessa, me separo dele e me lembro aliviada que eu existo sim, sem aquele homem, mas a gente é uma dança longa, demorada e inteira. Deve ser por isso que de vez em quando me confundo com ele.
– Desculpa, me distraí. Sim, o cocô. Duas sacolas. Que bom. Podemos jantar agora?