Uma sexta-feira igual a quinta, que foi a mesma que a quarta, final de tarde. A velha passa pela sala e desliga o televisor pelo botão. Insistente em não usar o controle, empoeirado na estante. Vinha com uma caneca de chá e subiu devagarinho as escadas largas, com zelo de não escorregar no seu chinelo de pano. Seu corpo magro pesava muitos quilos e chegou ao andar de cima respirando pela boca.
No corredor, driblou caixas que se espalhavam pelo chão e pelo gigante banheiro e pelo outro quarto. Tudo dava eco porque já não tinha mais quadros nas paredes, nem tapetes no chão.
Em seu quarto, abriu a persiana e depois a janela de madeira que faz um barulho a se ouvir da esquina. Da esquina vinham vozes de jovens, ela deduz que eram jovens e já sabia que noite adentro teria música, festa, os vizinhos festejam toda semana, só podem ser jovens para serem tão felizes.
Se sentou à beira da cama, intacta, bem arrumada e lisa, que ela fazia sempre ao levantar. Tirou o casaco porque estava frio mas nessa hora se sentia quente e deixou os óculos na mesa de cabeceira, pensou que não havia nada mais para enxergar. Sabia onde tudo estava, sabia para onde tudo iria.
O telefone tocou interrompendo a concentração que antecede a rotina da velha. Era o filho dizendo que iriam visitar no sábado. Tá bem, meu filho, venham sim. E como se fosse um aviso, pensou, é hoje mesmo.
Deu-se a tirar as coisas que sobravam do armário, roupas que usava no dia-a-dia, calcinhas de velha, suéter, meias. Um vestido azul claro ficou pendurado, lindo, já estava passado. Tinha mangas compridas, bom por causa do frio. A meia calça branca também. Separou também uma pulseira de pérolas, presente do falecido quando noivaram. Os anéis ela tirou dos dedos e deixou na penteadeira.
Com as roupas em caixa, o armário quase vazio, buscou papéis, canetas e tesoura. Cortou pedaços menores e anotou o destino de cada papelão: para minha filha Alice; para meu filho Pedro. Fotos de família: vejam o que querem fazer. Doação. E nos móveis do andar de cima, já tinha feito no de baixo, escrevia: vender (vale dinheiro). Para Alice, que sempre quis a penteadeira. Doação. Restauração. Façam o que quiserem.
Pode parecer que foi rápido, mas não foi. A velha demorou muito mais do que nas outras vezes que fez o mesmo processo, que já fazia há mais de uma semana. Vagarosa, fez sem pressa, mas certa do destino das coisas e do seu.
Fechou as janelas e então a persiana. Já era madrugada quando a velha foi ao banheiro fazer seu asseio. Tomou um banho não longo nem curto, escovou os dentes e penteou os cabelos. No seu quarto, vendo-se nua no espelho da penteadeira, sem acender as luzes, desejou que estivesse bonita, e perfumou o pescoço e os punhos, e arriscou uma sombra nas pálpebras, um lápis nos olhos. Colocou a pulseira e se viu pronta. Se deitou do lado usual da cama de casal, descanso da viúva, se cobriu porque era inverno. De olhos fechados ficou no escuro, no quase silêncio, interrompido pelos vizinhos da esquina, fazia frio no seu peito.
Se lembrou de algo importante: as instruções para seu enterro. Levantou de novo e escreveu, agora com menos paciência e em garrancho:
Serei brevemente velada, nada de cerimônias exageradas, afinal ninguém se importará com uma velha como eu. Serei enterrada no túmulo dos meus pais. O destino dos meus pertences está dado. As senhas da caixa econômica estão aqui. Não tirar este vestido de mim, nem a pulseira.
Terminado o bilhete que deixou na cabeceira, voltou à cama. Era só esperar e no amanhecer, teria morrido. Viria a calhar a visita do filho, alguém poderia encontrar o corpo. Fechou os olhos, esperou o sono, do sono viria o não acordar. O estômago fez ronco, ela não tinha jantado, não precisava mais jantar. E a cabeça lhe trouxe memórias que não conseguiu guardar nas caixas e ao invés de adormecer para a partida indolor, a velha ficou com os olhos pregados.
As perdas, o marido tão jovem morreu, a cachorra morreu, a gata morreu. Já não tem mais motivo, é claro que acabou. Tão velha. Os filhos foram fazer seus filhos, sua vida, seus negócios. Os pais morreram, nossa, faz tempo. Mãe, que saudade, pai. O marido, tão bonito. As viagens que fizeram e as que deixaram de fazer. O namoro, o casamento. A casinha no centro da cidade, a primeira. Depois a segunda, e a terceira, finalmente a casa própria. A gravidez, Alice não parava no útero, inquieta, quem diria que seria uma moça tão calada. Pedro já foi mais tranquilo, mas a fez enjoar muito. Os partos, uma cesárea e outro não. Nada de normal naquele parto. As crianças correndo, brigando, o banho de mangueira, as notas ruins, o joelho ralado, o dente quebrado. A adolescência de música rock’n roll. Pedro ficava de namoros, Alice foi pega fumando. Que engraçado. Cada coisa. As amigas antigas, os colegas do trabalho. As amigas da rua, a irmã e seus sobrinhos, o cunhado bobo, tão querido. As risadas na cozinha, a massa quente na mesa de domingo, os netos chegando, os netos pedindo colo, vovó olha o que eu sei fazer, os netos pequenos que vão crescendo e vão dando continuidade na vida, a vida que existe e não para, será que ainda existe a vida, será que eu ainda estou viva, eu tão velha, uma velha que existe mas não vive, ainda existirá coisa a vir, tão velha eu…
E o sol nasceu, nem a persiana deu conta de esconder e ela não tinha morrido, ainda estava acordada mesmo, com olhos no teto e no teto a luz invasora pelas frestas.
Se sentou na beira da cama, e procurou na gaveta seu RG, queria conferir. 1950. Era o ano em que nasceu. Fez uma conta rápida e se lembrou que tinha 71. Se levantou e parou diante da penteadeira, antes colocou os óculos para enxergar sem erro. Mirou bem a figura esguia de vestido azul, se aproximou para ver o rosto, tocou as bochechas e pensou, acho que em voz alta,
eu não sou velha.
Lembrou que a mãe faleceu com 93, o pai com 89. Oras.
Saiu tirando as folhas pregadas nos móveis e nas caixas, amassou as instruções. Jogou no lixo o controle, que teimava em tentar ter, não o do televisor, não o da vida, essa já sabia que não tinha mesmo, mas da morte.
Não demorou que o filho chegasse com os filhos dele e trazendo sacolas de mercado. Quando viu a mãe, se espantou, olha que linda que a vovó está, e foi anunciando que fariam um churrasco. Ela vibrou com o churrasco e com o abraço das crianças nas pernas. Fazia um sábado bonito, um céu azul mais azul que o vestido. E ela riu uma gargalhada presa, Pedro achou a mãe diferente, a mulher dele também, que deu um beijo demorado no rosto da sogra e sussurrou adorei te ver assim, sorrindo.
O filho que entrou pelos fundos, pela cozinha cozinha, quando avançou para a sala se assustou com as caixas. Perguntou o que é isso, mãe. E ela disse: eu cansei, filho.
Eu cansei e agora vou morar na praia.