Verônica entrou no quarto da sua mãe e a encontrou sentada num banquinho baixo, perto da janela onde a luz ajudava a linha a entrar na agulha. Claro que ouviu o ranger da madeira mas não buscou com os olhos quem chegava.
– Bença, mãe
– Deus abençoe
Dona Odila era uma mulher mais idosa no branco dos cabelos do que na pele do rosto. Morena de rugas grandes e seios fartos de quem alimentou seis filhos. Sorria muito pouco, quase nunca. Verônica ensaiou um beijo na cabeça da mãe que continuava de costas e curvada sobre os pontos em uma roupa qualquer, mas hesitou e deixou apenas que a mão acarinhasse ligeira as costas largas.
Se sentou à beira da cama e respirou o ar do quarto antigo, impecavelmente limpo e simples. Cheirava a rosa. Alisou o lençol bem estendido da cama e pigarrou.
– O que a senhora tá fazendo aí?
Dona Odila levantou o pano e a agulha para mostrar, ainda sem se virar à filha, e não respondeu. A quietude parecia entregar o bater do coração de Verônica e antes que as lágrimas vazassem dos olhos já cheios, soltou:
– Mãe
– Hum?
– Eu tenho muito medo, eu quero voltar pra cá
Dona Odila virou o tronco e depois a cabeça e só então mirou a filha, estava bonita e triste. Viu seu rosto, sua barriga já avançada nos meses da gestação. Usava um vestido branco rendado, costurado por ela, e uma sandália baixa. Os pés estavam inchados e no colo escorria o suor daqueles dias quentes do interior.
A mãe levantou devagar, apoiando à cama e sem dizer nada arrastou o chinelo de pano até a cozinha. Verônica foi atrás e buscou um dos bancos enferrujados escondidos embaixo da mesa. A mãe começou a preparar um café na caneca amassada, acendeu um cigarro e permaneceu sem dizer nada.
Verônica levava na barriga a primeira filha, feita no primeiro ano do casamento. Tinha então vinte e dois anos. Eram seis meses de uma gravidez solitária, seu marido tinha lá seus sonhos ainda. Viajava quase o mês inteiro e ela sabia que era para o bem da família, precisava ganhar dinheiro, ela não tinha do que reclamar. Mas a tristeza era tão grande, o choro era tão sempre que Verônica pensava que a qualquer momento ia secar. Sabia também que Odila acharia bobagem, frescura de menina, tinha um homem bom e trabalhador, uma casa alugada e comida na mesa. Um bebê, logo nos primeiros meses das núpcias. O que haveria de mal?
Queria tirar do peito a angústia, mas naquela família, as sábias mães não davam conselhos e as assustadas meninas não o pediam. Todos os sentimentos se espalhavam pelo silêncio. O que precisava ser dito era feito pelo olhar, ou pela falta dele. Mas Verônica pediu, sem pensar para não perder a coragem.
– Eu tenho medo, mãe. Eu me sinto só, eu não sei se vou dar conta. Como a senhora conseguiu? Por que que dói tanto assim? Eu sei que ele me ama e me quer bem, mas sinto falta de carinho. Ele chega tão cansado da estrada que mal me cumprimenta. Não me falta nada, é verdade, a neném tá bem também. Mas é tão doloroso, mãe, arrumar a casa, a comida, a mesa, carregar essa criança que pesa e passar semanas escolhendo feijão e ouvindo a rádio, indo à feira, sem uma conversa, contando os dias pra sua volta e quando ele chega, mal me olha, não me procura. Janta contando os planos de fazer dinheiro e dorme como um anjo, sem perguntar como eu tô, como tá a neném. Eu acho que fiz uma besteira, eu não sabia que seria tão ruim ficar longe daqui, eu preferia trabalhar limpando a casa das madames, cuidando das crianças delas mas poder voltar pra cá todo dia.
Odila ouviu, servindo o café e segurando o cigarro na beira da boca. Puxou outro banco, e se sentou na ponta da pequena mesa, apagou a bituca e olhou dura para a cara da filha.
– Você nunca me pediu conselho, e eu também não daria…
– Eu sei, desculpa, mãe
– … porque essas coisas da vida – falou enfática – não tem receita. Como eu consegui nem eu sei. Foi muito difícil, Verô, foi muito doído. Sua sorte é ter um homem que não te destrata, que não tem vício. Eu não tive a mesma sorte e tô aqui, inteira, veja. Seu pai tem os defeitos dele mas me ama, eu também amo. Mas isso aí que cê tá sentindo não tem nada a ver com casamento, não. Tem a ver com o que cê tá carregando na barriga, essa criança que vai chegar. Toda mãe é solitária, minha filha, só que cê tá descobrindo isso agora. Só a mãe sabe o que tá acontecendo, só ela sabe o que tá sentindo. Não tem como dividir, não tem como descansar. Depois de feito tem que cuidar, tem dar de comer, tem que lavar e só quem é mãe sabe que não para nunca, mesmo depois de moço. A gente que é pobre às vezes esquece até desse tal de amor, não dá tempo de amar. Quer dizer, a gente ama e nem percebe… eu sei lá. Eu senti essa solidão a vida inteira, desconfio que minha mãe também sentiu. Eu não quero que você sinta isso também, mas não posso te enganar e dizer que vai passar. Às vezes não passa. O que te falta é um abraço, eu sei como que é, não pense que não sei. Eu não sou muito disso, mas cê tem que pedir pra ele. Quando cê era menina já grande, cê entrava debaixo da minha saia quando eu tava costurando e mamava… até os quatro anos…
– Eu lembro
– … mas eu nem tinha leite mais. Cê queria era sentir meu cheiro, agarrar em mim. Eu deixava. Era o seu jeito de pedir carinho porque cê sabia que eu não dava abraço. Mas agora cê é grande, seu marido deve abraçar melhor que eu. Pede pra ele, ele dá.
Verônica ouviu Odila de cabeça baixa e foi tanto choro que água escorria até do nariz. A mão enrugada e fria da mãe pousou pesada em seu rosto e o que poderia ser um beijo foi um carinho de compreensão, seguido de um sinal da cruz na testa.
– Eu, minha mãe, minha vó, minha bisa tamo cuidando do cê. Agora vai embora, vai… Vai cuidar da vida.
4 comentários On Verônica e Odila
Adorei! Simplesmente perfeito!
Que honra receber este comentário! Obrigada!
que texto! lindo lindo!
Obrigada, querida! Fico feliz que você gostou!