Se Woody Allen, sim, aquele cineasta polêmico e famoso, estivesse um dia andando pelo bairro da Pompeia, procurando inspirações para uma nova produção, decerto repararia em Briane Sommer.
Ela estaria andando numa calçada levando seus cachorros em uma coleira, arrastando chinelos de dedo e usando calças de moletom. Cumprimentaria vizinhos, salivaria com uma empada na vitrine da padaria, conversaria com os pets e riria sozinha das respostas que ela – supostamente – escuta deles.
Woody a abordaria quase sem jeito e se surpreenderia com seu inglês perfeito e com a total desimportância que Briane daria a ele. Isso porque ela não é mulher de se afetar com homens famosos.
A convidaria para um café porque algo de ordinariamente interessante a moça mostrava e ela, sem titubear diria que sim, porque naquele horário a barriga já roncava de fome.
Na conversa na esquina de sua casa, o cineasta que passou despercebido como se fosse um senhor do bairro, confessaria que estava no Brasil em busca de inspiração para a nova película. Briane responderia bravo, bravo, eu posso te ajudar… histórias não me faltam!
E assim, ela começaria contando do dia que nasceu, misturaria eventos dispersos e escolheria uma história preferida para aquele dia. O cineasta, encantado com sua nova musa, convidaria Penélope Cruz para interpretá-la na produção colorida que seria, sem dúvidas, uma das suas maiores bilheterias.
Assim que foi tirada da barriga de sua mãe, a câmera da vida deu um close no rosto da pequena Briane. Seus olhos de recém-nascida, curiosos e remelentos, prometiam um destino agitado. A mãe, quando a sentiu no colo, sabia que a menina a faria torcer os bigodes, mas decidiu calar porque praga em bebês costumam pegar mais forte.
Na infância, experimentou a liberdade, mas nunca se contentava com ela. Fazia perguntas desmedidas e descabidas sem cessar e toda a semana a mãe se lembrava que, desde o primeiro dia, soube que a garotinha não sossegaria vivendo uma vida comum.
O corpo magro e pequeno da menina não dava conta de conter todas as suas vontades. Cresceu vivendo com intensidade, gostando de sonos profundos e com fomes vorazes. Como só a comida não bastava, se nutria de conhecimento e de arte.
Foi assim que, para dar conta da cabeça desejante e um corpo em movimento que ela encontrou sua forma de liberdade na dança.
A dança concedeu à Briane o passaporte para várias culturas e gentes. Deu a ela também a dádiva de ensinar quem quisesse, como ela, aprender os prazeres da carne e do espírito através dessa arte.
Nos anos 2000, quando dava aulas de salsa, foi chamada por uma de suas alunas para um festival na Índia. A mulher, que tinha conexões fortes com o país e era perdidamente apaixonada pela dança, levou convidados e professores para dias de aprofundamento nas danças latinas.
Em setembro de 2009, Briane voou para Nova Dheli e foi hospedada em um hotel seis estrelas e se servia de verdadeiros banquetes vegetarianos – que ela até gostou, mas não por muito tempo – feitos por equipe contratada pela idealizadora do festival.
Briane, que na mala levou também a sua curiosidade inata, ficou deslumbrada por estar em lugar de tanta cultura, ainda mais por viajar fazendo o que ama. Mas demorou a ser dar conta de que o pisava no país onde estava uma obra de arte e da história de grandeza impossível de medir: o Taj Mahal.
Para os perdidos no tempo e no espaço, esse é um mausoléu construído no século XVII por um imperador como homenagem póstuma à preferida de suas esposas. A sua construção levou mais de vinte anos e nela trabalharam mais de vinte mil homens.
Quando percebeu que estava mais perto que nunca esteve de uma obra arquitetônica que guarda um passado histórico e tão significativo como esse, teimou que precisava ir até lá. Sabia que a depender de uma nova sorte no destino, não voltaria à Índia e perderia a chance de ver de perto aquela grandiosidade.
Saiu ansiosa convidando os colegas para a acompanharem e achava estranho que recusassem tão rápida a proposta. É que ele tinha se esquecido, por um lapso causado pela animação incontrolável, que o hotel onde estava ficava a horas de distância da cidade Agra, onde está a construção.
Enquanto ensinava uma salsa aqui e fugia para um junk food carnívoro dali, matutava num jeito de fazer a viagem. Teve uma ideia e procurou logo o bureau do hotel. Pediu informações sobre traslado para turistas para que pudesse ir sozinha.
A ideia logo caiu por terra já que eles não prestavam esse tipo de serviço. Inquieta e teimosa, insistiu em saber se eles poderiam ao menos indicar uma empresa de táxi, motoristas ou qualquer coisa do gênero.
Na área externa do hotel havia carros que se disponibilizavam para transportar turistas, mas foi avisada que essa escolha seria de sua conta e risco, responsabilidade total dela.
“Por minha conta e risco” soou assim, en passant em sua cabeça, mas ela de fato não se apegou ao pensamento. Se preocupou por ser uma mulher estrangeira fazendo uma viagem sem acompanhante, num país completamente desconhecido, com um homem tão estranho quanto.
Andou no meio dos motoristas que esperavam clientes e seu critério de escolha era bastante subjetivo: decidiu por aquele com o semblante mais amigável, acordou os preços e marcou a hora da partida.
Sairiam na mesma noite, por volta das 23h, depois de cumprir com os compromissos no festival. Ida e volta deveriam acontecer num intervalo de horas bem apertado, que ela calculou meio por cima, mas teve a certeza de que daria certo. No dia seguinte, um domingo, ministraria um workshop às 14h30 da tarde.
Veja bem, não é que existiam smartphones e acesso à internet a qualquer hora e lugar como existem hoje. Briane ficaria incomunicável, no carro de um homem, por uma noite inteira. Os colegas só teriam notícias quando ela voltasse. Se ela voltasse.
Para cobrir suas pernas, escolheu uma saia escura com bordados na barra. Escolheu entre suas roupas uma blusa com apliques que desenhavam uma vaca, decisão intencional. Quem sabe levando no peito o animal sagrado estaria de protegida dos perigos. E com uma coragem muito maior que o medo, Briane apareceu no ponto de encontro na hora marcada.
Entre um e outro assunto ameno, o homem indiano com seu inglês carregado de sotaque quis saber mais da passageira. De onde vinha, por que vinha, qual seu nome. Ao escutar “Briane”, disse meio de um jeito meio suspeito “hum… just like Biryani Masala” ao que nossa mocinha aventureira reagiu com um riso preocupado. Aquilo era provocativo? Ameaçador?
Mas ele falava de um tempero típico do país e o que a princípio pareceu um tipo de xaveco sem vergonha e amedrontador, parou por aí mesmo. Briane, que não queria dar corda para o papo e não aguentava mais ver a algazarra do trânsito indiano, pediu licença e se deitou no banco detrás para um cochilo.
Mas uma taurina não costuma ter muitos problemas em dormir, mesmo em situações de suposta tensão. O que seria um cochilo virou sono profundo e atravessou a noite e o motorista deu mais uma prova de sua boa índole, para além de um rostinho pacífico, quando a acordou já próximo à Agra.
Despertar no lugar onde habita o Taj Mahal no mesmo tempo que o rei Sol surgia no horizonte, foi significativo e emocionante. Saiu de longe na noite anterior e como num passe de mágica, um hiato de sonhos, amanheceu próxima a uma das maiores obras que a humanidade já viu.
Ela acordou em outro lugar e dentro do seu peito acordava uma alegria genuína por ter se dado de presente essa viagem. Soube, naquele momento, que se tivesse calculado demais os riscos, se tivesse pensado demais, não veria o que estava prestes a ver. Não colocaria os pés em um lugar que abriga séculos de história e cultura.
E conheceu o Taj Mahal, seus salões e cúpulas, adornos e pedras preciosas em cada metro de construção. O motorista lhe deu espaço para andar e aproveitar os detalhes, sem deixar de guiá-la quando fosse necessário. Antes do relógio acusar o tempo que se esgotava, a levou para conhecer artesões locais que contam ser descendentes do império que originou o Taj Mahal.
Ela comprou elefantes para atrair fortuna. Ainda encomendou, mais uma vez por sua conta e risco, uma mesa que prometeram enviar por courier. A promessa dos indianos foi cumprida e ela recebeu, meses mais tarde, a mesa em perfeito estado.
De volta à Nova Delhi no horário calculado, Briane vestiu seu figurino e às 14h30 estava pronta para mais um show, mais encantador que os outros porque dessa vez trazia no rosto a felicidade da sua aventura de uma noite nas estradas da Índia.
Os elefantes da fortuna que decoram sua casa atraem continuam atraindo riquezas que poucos podem ter: a coragem da entrega e o desejo incansável de uma vida sentida no corpo e no coração.
Essa é uma produção Fio, um projeto de escrita literária criada a partir de relatos pessoais, compartilhadas comigo em encontros virtuais.
Você me conta sua história, eu a escrevo.
A Briane eu conheço de outros carnavais (ou outras aulas de Pole Dance) e a Brenda, que também já teve sua história contada aqui, a presenteou com um Vale Fio.
Quer contar sua história ou presentear alguém?
Mande um email para thaissa@naodito.com.br