Ontem, quando saí no quintal para um breve intervalo antes de um atendimento, tive um ímpeto de ligar para meu pai. Esse tipo de pensamento acontece de forma muito, muito rápida porque no instante imediatamente posterior me lembro que falar com ele ao telefone é impossível. 

Em seguida, a lembrança traz a voz dele, quase ainda nítida, com frases que ele possivelmente diria se esse impossível não estivesse entre nós: 

Oi, filhote… tudo bem comigo? 

Sim, desse jeito, uma piada interna da família de autoria da minha irmã. 

Bão, bão. E você? E o Rê? E a Rebecca? 

Tão a fim de assar uma carninha domingo? 

Ô filhote, sabe o que o pai ia te pedir? 

O que ele me pediria? Eu adoraria ouvi-lo me pedindo alguma coisa. Qualquer uma. Ajuda para traduzir uma formulação química bizarra escrita em inglês, que ele mesmo deu conta de entender mesmo não falando qualquer outra língua. Ajuda para digitar um arquivo e mandá-lo por email a algum cliente. Ajuda para que eu escrevesse uma mensagem de Feliz Ano Novo para seus contatos do whatsapp. Alguma ajuda que eu pudesse fazer por ele ou alguma outra que eu pudesse negar. 

Arquivo pessoal | 1993

Amanhã, dia 29, ele faria 67 anos e eu com certeza escreveria um texto. Se esse texto estivesse nas redes sociais, minha mãe o avisaria porque ela sempre via mais rápido. Se eu escrevesse por carta, ele certamente se emocionaria, mas não na minha frente. Até porque eu pediria para lê-la sozinho. 

A última carta que ele recebeu de mim foi em seu velório. Depois de lê-la, a coloquei junto dele no caixão para que fosse incinerada com seu corpo. A única forma que encontrei para que um pedaço de mim acompanhasse sua matéria física. 

Dia desses sonhei que eu seguia em frente. Engraçado, agora estou entendendo que eu seguia em frente andando na rua e era o meu próprio aniversário. Quando ia virar a esquina, olhava para trás e o via caminhando junto com minha mãe. Eu voltava porque sabia que precisava receber deles o abraço de parabéns. 

Lembro do abraço dele, do seu abraço meio duro mas um abraço de pai. O abraço do meu pai. No sonho, idêntico ao da realidade. Me desejando um parabéns desajeitado me chamando de filhote. Eu recebia de bom grado, mesmo que eu pensasse que ele não poderia estar ali, me felicitando, ele tinha morrido. Mas fechei os olhos e senti seu corpo, tudo bem, não há lógica nos sonhos, muito menos nas saudades. 

Na manhã que sucedeu ao sonho, saí para uma caminhada. Enquanto eu esperava na faixa, numa rua mais adiante de mim, uma cachorra passeando com a dona parou e ficou me olhando. Foi puxada pela coleira, quase arrastada, mas não saía do lugar. A dona certamente desistiu, deixou que ela me esperasse e eu continuei caminhando na direção dela. Me aproximei rindo e perguntando se era por mim que ela esperava. A cadela me cheirou rapidinho e pulou na minha cintura, me agarrou nas coxas com as patas da frente e escondeu a cara. Ficou abraçada em mim por um tempo que suponho ter sido mais de um minuto. Já tínhamos nos visto antes, mas ela jamais me deu bola. 

Segurei o choro de emoção e agradeci a festa, disse que ela podia fazer isso sempre que me encontrasse. Depois, andamos juntas, eu, a dona e cadela. Seu nome é Faísca. 

Não acredito em nada, não acredito que o espírito do meu pai me ronde. Bem que eu queria, até já pedi ao universo que me mostrasse, que eu pudesse ouvi-lo falar com voz rouca não só nos áudios que guardo no whatsapp. Já me concentrei tentando voltar no tempo, fazendo uma mágica, mudando o destino ou pelo menos me despedindo. Já testei meu pensamento de onipotência e o resultado foi o esperado: minha potência está só em aceitar a realidade e não expulsar a saudade.  

Mas o encontro com a cachorra e seu abraço surpresa me disse algo sobre meu pai. Bem no dia que eu sonhei com ele. Bem no dia que eu precisava de um acolhimento vindo de longe. Bem no dia! 

Aquela última carta que entreguei ao meu pai no velório, terminava assim: 

“(…) meu melhor churrasqueiro apagou o fogo 

Fiquemos com a brasa.” 

Fiquei. E a brasa que às vezes dá sinais de se apagar de vez, de repente, me fez ver e sentir faísca. 


 Uma homenagem ao seu Osvaldo Paulino. Já não faz sentido dizer que morro de saudade, mas que vivo dela.

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