Ontem fui a um lugar de carro. Num caminho de, sei lá, meia hora, me chamou atenção uma sucessão de imagens: os motoristas estão completamente insanos no trânsito de São Paulo, isto é, todos estressados e sem freio, literalmente. Os entregadores de aplicativo estão cada vez mais em perigo, é sinal vermelho furado, bike da contramão em via movimentada, menino pedalando e olhando o celular: eles estão esgotados, cansados, apagados e crescem num volume absurdo e pode ser que por isso baixem a guarda e corram mais riscos, afinal, a vida já está pesada demais (uma das consequências do trabalho informal e mal remunerado). Com cinquenta reais não pude encher nem meio tanque do meu velho e querido carrinho com etanol. Tem muito carro na rua, demais, inclusive me arrependi profundamente de ter sido mais um. Na região da Berrini muitos imóveis que antes eram restaurantes cheios e movimentados estão desocupados e na frente de um dos mais famosos, tem colchão de uma pessoa em situação de rua – população, inclusive, que cresceu assustadoramente desde o final de 2019. Não há farol onde não haja pelo menos uma pessoa pedindo ajuda para comer.
Tudo se assemelha ao caos. E é.
Todas essas cenas que descrevi não foram, de forma alguma, uma novidade para mim. Só que não deixo de me surpreender com elas, até porque acredito que, se em algum dia eu achar que esse estado é comum e aceitável, poderei ter a certeza de que perdi toda a minha capacidade de pensar e sentir.
Depois dos acontecimentos desse 7 de setembro, a sensação que tenho é de que, se estávamos no buraco, alguém cavou mais um pouco e ainda tem fundura para descer.
Vivemos eventos acumulados, que não cessam, que se amarram, que desestruturam famílias e comunidades. Estamos convivendo sob a sombra de lutos não falados, não vividos, não elaborados porque se engrenam em outras perdas. Pessoas em sofrimento acodem outras pessoas em sofrimento. Se por um lado isso me dá a certeza da riqueza cultural e da capacidade afetuosa do ser humano, por outro me soa como um aviso de que precisamos mesmo sobreviver.
O que vim dizer é que se você tem condições de se manter saudável (física, emocional, mental e materialmente), mantenha-se. A nossa comunidade precisa agora, e precisará mais ainda daqui a pouco, de quem pôde passar por esse longo e aflitivo período de pé. O que significa estar saudável cada um descobrirá, segundo suas possibilidades e particularidades.
Não sei se todos poderemos sair desse caos inteiros; a maioria de nós deixou pedaços pelo caminho. Mesmo que não tenhamos perdido alguém, estamos perdendo muitas outras coisas que são pilares da nossa sociedade, sem chance de despedida. Sem essas bases que agora estão em ruínas, precisaremos reconstruir um modo de vida novo. Quem tiver ferramentas para se manter de olhos abertos e a postura ereta, deve fazê-lo.
Devemos acolher quem nos demanda. Isso não significa, necessariamente, ajudar uma rede muito grande, tampouco dividir seus pertences e bens pessoais com os pobres, tirar da suas economias para dar ao outro (a maior fantasia de quem acha que isso define comunismo). De repente, escutar uma pessoa próxima que precisa falar, já é um acolhimento. É aquele famoso “ninguém solta a mão de ninguém”. Lembra?
Conservar a troca de afetos com aqueles que compartilham valores, com aqueles que nos apoiam, que nos inspiram, com aqueles que fazem os nossos olhos brilharem. Pode não parecer às vezes, mas a vida não é feita nas redes sociais virtuais – e ainda bem!
Por fim, ouvir e contar histórias também é uma das formas mais bonitas e eficientes de perpetuação do que vivemos, de aprendizado passado adiante e de marcar nosso tempo. Vamos ouvir e contar para além da velocidade das redes. Precisamos registrar nossas vivências, pela via da oralidade ou das marcas artísticas que deixamos, mas mais do que nunca, precisamos contar para não nos esquecermos e nem nos perdermos.
Já tem gente demais perdida.