Quando subi as escadas e vi a lateral da casa, com a porta de entrada e janelas escancaradas, sorri um pouco eufórica. Depois dela, lá adiante, tinha mato e árvore e o som do riacho, que compõe a propriedade, já se ouvia dali.
Entramos descalços e vendo com os olhos arregalados teto, sala, varanda e quarto e tudo que atravessa pelos vidros e faz a gente se sentir no meio da mata ou a mata no meio da gente. Andamos pelo quintal e encontramos a escada úmida e verde, guiados pela água batendo em pedra e descemos um caminho curto mas que no encantamento parecia longo, mágico, e chegamos no rio. Fria, muito fria a água. Nos olhamos e sorrimos satisfeitos, ainda eufóricos, eu com vontade de ser devorada pelas copas altas que faziam sombra, de dar nós pelo corpo com os cipós suspensos.
Se a casa de Glenda falasse, seria na língua da natureza. Ali eu não consegui encontrar tantas palavras, vai ver é assim mesmo quando se acha um lugar que conversa com o coração, já não há nada que dê conta de dizer.
A estante da sala é linda e são muitas as histórias que conta, poesia e yoga, literatura e budismo, fotos e altar. Música e filme, TV e incenso. Vejo Glenda no que suponho ser a Índia e fotos de uma criança que penso ser seu filho, ou seu sobrinho, quem será? A dona desse lugar parece estar em cada canto e todas as coisas em que reparo, os livros de viagem, os enfeites na mesa de centro, a manta que cobre o sofá, me contam uma história sobre ela. Mas de um modo contraditório, ela parece ter se ausentado tão completamente a ponto de parecer que a casa era nossa mesmo, como se estivéssemos acostumados a estar ali.
Bandeiras budistas nas portas, plantas vivas nos vasos, colheres de pau, forno a lenha. Uma banheira grande, um chuveiro simples e abundante, vidros imensos nas janelas, luz do sol. Eu, que certamente sou tão mais egoísta e imatura que a dona da casa, penso que se ali fosse meu, eu sentiria ciúmes. Ciúmes do rio, do mato, das flores, dos pássaros, da casa com teto de palha – de Minas Gerais, ela me contou – e as vigas de madeira. Mas pensando aqui, para se ter um refúgio como esse, para fazer um abrigo assim, é preciso ter um coração maior que o pensamento. Só gente assim é capaz da humildade de viver em meio à tanto sem mostrar que tem a posse. Só gente assim é capaz de abrir as portas, arrumar as camas, oferecer o quente e o conforto para que desconhecidos entrem, comam e durmam, confiantes e entregues. Gente assim sabe o que é partilha.
Na casa de Glenda abandona-se a vigília. Sem querer, a gente se entrega ao sentir. Sonhei acordada com o que eu quero para depois e dormi atenta aos sons que comunicavam que eu estava, não no meio do nada, como dizem por aí. Mas no meio do tudo. Um tudo que é tanto que, confesso, assusta um pouco.
À noite, na varanda, se vê só até onde a visão alcança e o contorno da mata atlântica lá no fundo. Em cima dela, um céu azul royal que tem tantas estrelas penduradas que me sinto vigiada. Observo e ouço. Imagino o que dali para baixo, quantas aranhas, cobras, bichos que não conheço, plantas dormindo e acordando, corujas, pássaros, macacos, abelhas, flores, água, terra, vento. Tudo em um movimento lento, imperceptível ao viver apressado e frenético da gente que mora entre fumaça, concreto e sirene.
Dormimos feito anjos e fomos acordados por macacos reivindicando café da manhã, rasgando folha de bananeira, pendurados pelo rabo. Eram vários, parecia uma platéia em volta de nós dois mas sabiam que as celebridades eram eles. Amanhecer na casa e comer no sol da área externa faz o gosto de pão ser ainda melhor. Parece que o café inunda e aquece o peito, dá vontade de correr, de nadar, de dormir, de beijar na boca. Dá vontade de falar, ficar em silêncio, tirar a roupa, jogar os relógios do mundo, acabar com o sistema, fazer almoço para todas as pessoas, destruir as grandes cidades, parar as fábricas.
No terceiro e último dia que ficamos lá, roubei a câmera do Renato e com minha vista astigmata fiz fotos que agora compõem essa postagem. Assim como a literatura, a fotografia me conta algo sobre uma entrega para a observação, um registro do instante. Sozinha, desci para o riacho e gastei um tempo que não contei, submersa numa quase meditação, fazendo retratos das coisas que me tocavam e senti até uma vontade de aprender a fotografar. Mas para além disso, voltei com a cabeça oxigenada e viva.
Se tudo isso parecer um exagero, se eu soei como se estivesse falando de um palácio, saiba que é mesmo. A casa de Glenda, como outros lugares que já visitei no Brasil, fez com que eu repassasse, não apenas nos planos, mas também nas minhas palavras, o que eu quero, almejo e busco: simplificar para continuar existindo.
E sentindo.
Aqui embaixo, mais fotos desses dias gostosos e reenergizantes.
4 comentários On A casa de Glenda
Amei tanto o texto quanto amei esses poucos e intensos dias que passamos na casa de Glenda
Foram dias deliciosos com você!
Amiga, seus textos já nos teletransportam pros lugares, mas esse, junto com as fotos… tá especial demais <3
Que bom saber disso, amiga! Queria mesmo levar todos lá. Se não dá na vida real, que seja pelo texto. 🙂