Eu não sei se você sabe, mas há três meses e meio deixei um trabalho onde permaneci por nove anos. Logo mais, a “crise de identificação” que me trouxe até aqui vai comemorar um ano. A decisão se valeu de muitos por quês, mas foi  bastante sustentada pelo meu desejo de me dedicar à psicanálise, como estudo e carreira. 

Deixar um trabalho que me ofereceu, por tanto tempo, não apenas um salário fixo e um conforto de benefícios, mas também orientação, reconhecimento e laços com pessoas que caminharam comigo, não foi simples. Foi e ainda é bastante intenso porque tem mudado minha perspectiva sobre tanta coisa que seria impossível descrever neste texto. 

Há quem diga – e não foram poucas pessoas – que tive um ato de coragem. De início eu concordava, também via nisso uma ousadia e, pensando em termos práticos que envolvem segurança e dinheiro, de fato é. Mas hoje, alguns meses em uma rotina diferente, percebo que coragem mesmo seria ter permanecido. Isso porque, para ficar, eu abdicaria de um desejo imenso dentro de mim e me proporia o desafio de saltar, dia após dia, a frustração de fazer o que não queria mais fazer. 

É claro, é um privilégio poder tomar essa via de escolha. Mas isso também é papo para outra hora. 

O que vim contar é que o tal ditado de “a cada escolha, uma renúncia” é mesmo verdadeiro. 

Estou em um dia (dias, assumo) em que eu adoraria ter um roteiro para seguir. Eu adoraria que alguém me dissesse o que fazer. Seria ótimo ter uma reunião com minha ex chefe para que ela me avisasse se estou em um caminho perigoso ou então validasse minha atitude. Ligar para um colega de equipe e dividir com ele um problema que me preocupa e que, sozinha, não encontro a solução. Ele daria a visão dele e de repente, outras tantas pessoas seriam envolvidas na discussão e chegaríamos num resultado final do melhor a ser feito. 

Mas eu escolhi caminhar sozinha e, antes que você possa pensar que me arrependi, já digo que não. Não senti remorso um dia sequer, mas a verdade é que ser dona dos meus dias é bastante difícil. 

Dentro de mim, misturo uma inclinação a rebeldia, autonomia e independência com um gosto carinhoso pela ordem, pela rotina, pelo “o que é esperado que eu faça?”. A psicanálise, essa estrada que escolhi na bifurcação, exige um foco, responsabilidade e perseverança tão intensas que, por si só, fazem pular de mim o contrário: como perseverar nisso? há tanto a ser descoberto! como manter a cabeça programada nadando nesse mar de teoria, prática, vivência, análise, dor e deslumbramento? Tem dias que eu não nado, me debato e sobrevivo.  

O cenário dessa escolha é o que grande parte das pessoas próximas estão vivendo: pandemia, dentro de casa, na maior parte do tempo sozinha. 

Se por um lado me sinto orgulhosa de reconhecer em mim uma disciplina que eu achava que não tinha e que parece uma vitória diante de muitos relatos que escuto, por outro, aperto  os olhos bem forte e imagino que, quando eu abrir, alguém me dirá o que devo fazer e, numa segunda piscada, me sentirei totalmente segura de ser o que estou sendo. O que escolhi ser agora. 

O agora também tem sido um tema que perpetua e desorienta. Aqui, a  ideia massacrante de que temos de viver o momento presente, esquecer o mundo, o depois. Uma angústia contemporânea. Ali, a vida virtual oferecendo de forma não menos violenta um tipo de agora que rouba a minha racionalidade, a minha inteligência e me vende um gozo vazio, seja na diversão da internet ou na raiva das notícias. 

E, como mais uma controvérsia, saio da ordem vigente do horário comercial e me submeto, a mim mesma, sem que ninguém me exija, a mesma cobrança, semana começa, semana termina. Programo o que vou fazer, pelo menos de modo geral, e quando o planejado não se realiza, por qualquer motivo que seja, vem a culpa de não render. O quão bizarro isso pode ser? 

Querendo fugir de uma máquina mandatária e controladora, a cultivei dentro de mim. E não tendo uma chefia para me comunicar se estou de parabéns ou não, não tardo em dizer ao meu reflexo no espelho que eu poderia ser muito mais, mas algo me torna medíocre. 

Esse desabafo tem a intenção de ser apenas um desabafo mesmo. Ou também uma experiência boa de compartilhar: o controle, no final das contas, está mais na gente do que no sistema. A culpa, idem, e o tesão em fazer o que se faz, principalmente. Inclusive sofrer. 

Ué, e não é que a psicanálise está aqui?

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